Por: Fábio Lau /conexaojornalismo.com.br
A estratégia é perceptível: teriam que cercear no limite do aceitável os direitos da defesa de Lula. Como assim? Primeiro, impedindo que fizesse uso do que faz de melhor – conversar com o povo seja no palanque ou mesmo em vídeo – TV ou Internet. Assim, Sérgio Moro vetou inicialmente e o Tribunal Regional Federal ratificou a decisão que fere de morte um artigo legal – o direito de fazer imagem é garantido pela legislação. Diz o artigo 367 do Código Penal:
Art. 367 (…)
§ 5º A audiência poderá ser integralmente gravada em imagem e em áudio, em meio digital ou analógico, desde que assegure o rápido acesso das partes e dos órgãos julgadores, observada a legislação específica.
§ 6º A gravação a que se refere o § 5º também pode ser realizada diretamente por qualquer das partes, independentemente de autorização judicial”
Mas apenas isso não seria o suficiente para garantir que o adversário entraria minado em campo. A partir daí contaram com uma juíza que tentou anular aquilo que daria força moral ao depoente: remover a multidão de ativistas que seguia para Curitiba. Em vão. A decisão foi revista porque ia além do dito “aceitável”.
Um juiz deu ganho a um velho pedido de reintegração de posse exatamente na área onde os ativistas ficariam acampados.
Mas havia outras cartas na manga: o fechamento do Instituto Lula e a suspeição, dita e repetida na TV, de que a instituição guardaria alguma suspeita de irregularidade. Para isso o acionado foi um juiz do DF já habituado a agir em desfavor de Lula.
Por último, o golpe fatal que, acreditaram, desmoronaria Lula emocionalmente: a revelação de que Dona Marisa Letícia, morta há dois meses, teria sido a “mentora intelectual” da criação do Instituto. A notícia chega via um amigo do ex-presidente, José Carlos Bumlai. Uma espécie de psicografia levada aos anais.
Mas eis que, com todos os planos executados, Lula chegou altivo em Curitiba e nada do que foi dito ou tramado inibiu os desmotivou a militância – cerca de 30 mil pessoas. Lula vive, nesta quarta-feira (10), antes do seu depoimento, o seu momento Garrincha: em 15 de junho de 1958, diante da temível e insuperável seleção russa, o técnico Feola chamou Garrincha, até então reserva, para fazer e acontecer contra a defesa adversária. Garrincha, moleque, ouviu e no final perguntou:
– Mas o senhor já combinou com os russos?
A bola rolou e Garrincha entortou os adversários. O Brasil ganharia por 2 a 0 e arrancaria para o título. Portanto, o que a turma esquece, é que muitas vezes é necessário combinar com os russos. Garrincha vive neste dia 10 na figura de Lula!
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Garrincha driblou os russos |
Nelson Rodrigues escreveria sobre aquele dia, em que um Manoel (mas poderia ser Luís) driblou os poderes inquebrantáveis do mundo com seu molejo e verdade.
“E eis que, pela primeira vez, um “seu Manuel” é o meu personagem da semana. Com esse nome cordial e alegre de anedota, ele tomou conta da cidade, do Brasil e, mais do que isso, da Europa. Creiam, amigos: o jogo Brasil x Rússia acabou nos três minutos iniciais. Insisto: nos primeiros três minutos da batalha, já o “seu” Manuel, já o Garrincha, tinha derrotado a colossal Rússia, com a Sibéria e tudo o mais. E notem: bastava ao Brasil um empate. Mas o meu personagem não acredita em empate e se disparou pelo campo adversário, como um tiro. Foi driblando um, driblando outro e consta inclusive que, na sua penetração fantástica, driblou até as barbas de Rasputin.
Amigos: a desintegração da defesa russa começou exatamente na primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas, que vinha subverter todas as concepções do futebol europeu. Como marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável? Na sua indignação impotente, o adversário olhava Garrincha, as pernas tortas de Garrincha e concluía: “Isso não existe!”. E eu, como os russos, já me inclino a acreditar que, de fato, domingo Garrincha não existiu. Foi para o público internacional uma experiência inédita. Realmente, jamais se viu, num jogo de tamanha responsabilidade, um time, ou melhor, um jogador começar a partida com um baile. Repito: baile, sim, baile! E o que dramatiza o fato é que foi baile não contra um perna-de-pau, mas contra o time poderosíssimo da Rússia.
Só um Garrincha poderia fazer isso. Porque Garrincha não acredita em ninguém e só acredita em si mesmo. Se tivesse jogado contra a Inglaterra, ele não teria dado a menor pelota para a rainha Vitória, o lord Nelson e a tradição naval do adversário. Absolutamente. Para ele, Pau Grande, que é a terra onde nasceu, vale mais do que toda a Comunidade Britânica. Com esse estado de alma, plantou-se na sua ponta para enfrentar os russos. Os outros brasileiros poderiam tremer. Ele não e jamais. Perante a plateia internacional, era quase um menino. Tinha essa humilhante sanidade mental do garoto que caça cambaxirra com espingarda de chumbo e que, em Pau Grande, na sua cordialidade indiscriminada, cumprimenta até cachorro.
Antes de começar o jogo, o seu marcador havia de olhá-lo e comentar para si mesmo, em russo: “Esse não dá pra saída!”. E, com dois minutos e meio, tínhamos enfiado na Rússia duas bolas na trave e um gol. Aqui, em toda a extensão do território nacional, começávamos a desconfiar que é bom, que é gostoso ser brasileiro.
Está claro que não estou subestimando o peito dos outros jogadores brasileiros. Deus me livre. Por exemplo: cada gol de Vavá era um hino nacional. Na defesa, Bellini chutava até a bola. E quando, no segundo tempo, Garrincha resolveu caprichar no baile, foi um carnaval sublime. A coisa virou show de Grande Otelo. E tem razão um amigo que, ouvindo o rádio, ao meu lado, sopra-me: “Isso que o Garrincha está fazendo é pior do que xingar a mãe!”. Calculo que, a essa altura, as cinzas do czar haviam de estar humilhadíssimas. O marcador do “seu” Manuel já não era um: eram três. E, então, começou a se ouvir, aqui no Brasil, na praça da Bandeira, a gargalhada cósmica, tremenda, do público sueco. Cada vez que Garrincha passava por um, o público vinha abaixo. Mas não creiam que ele fizesse isso por mal. De modo algum. Garrincha estava ali com a mesma boa-fé inefável com que, em Pau Grande, vai chumbando as cambaxirras, os pardais. Via nos russos a inocência dos passarinhos. Sim: os adversários eram outros tantos passarinhos, desterrados de Pau Grande.
Calculo que, lá pelas tantas, os russos, na sua raiva obtusa e inofensiva, haviam de imaginar que o único meio de destruir Garrincha era caçá-lo a pauladas. De fato, domingo, só a pauladas e talvez nem isso, amigos, talvez nem assim”.